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Vampiro: A Idade das Trevas – Onde está a História no cenário? - Oratore, Bellatore, Laboratore.


Dando sequência as postagens sobre o Vampiro: A Idade das Trevas, vamos falar hoje de outro conceito histórico bastante difundido nas escolas nos anos 80 e 90 e que foi utilizado para se falar da sociedade mortal e vampiresca no jogo, a divisão dos homens entre os que rezam (Oratore), os que lutam (Bellatore) e os que trabalham (Laboratore).

Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, a sociedade medieval foi uma sociedade de oposição, uma sociedade maniqueísta, com oposições do tipo bons/maus e superior/inferior. A cristandade era muitas vezes representada por esses esquemas binários e isso acabava refletindo na sociedade que era, nesta época, dominada pela religião.

Contudo, conforme os homens tomavam consciência de suas posições e a sociedade medieval ia se tornando mais complexa e um dos primeiros esquemas feitos para explicar essa complexidade foi introduzir uma terceira categoria no conjunto binário, a classe que se situava entres os grande e os pequenos: Majores, medíocres, minores.

Este esquema era bastante popular no século XII, quando os burgueses das cidades medievais se apresentavam como medíocres entre a aristocracia dos grandes, quer fosses leigos ou eclesiásticos, e menos abastados camponeses e citadinos.

Mas este esquema não teve muita aceitação entre os clérigos, pois circulava entre eles um texto escrito por um bispo chamado Adalberon de Laon, entitulado Poéme au Roi Robert (Le Pieux) e datado de 1030. Nele, Adalberon mostra os três componentes  fundamentais na sociedade cristã: oratores, bellatores e laboratores, aqueles que rezam, aqueles que lutam e aqueles que trabalham, este seria o panorama social medieval a partir do ano 1000.

Este esquema é tomado como a base da sociedade mortal no mundo medieval sombrio de Vampiro.


Então vamos as, já famosas, questões: Este esquema é historicamente válido? E de que forma ele é utilizado no livro?

Como eu disse anteriormente, quem estudou história nos anos 80 e 90, teve contato com essa divisão e aprendemos que os oratores eram os monges medievais, detendo o poder hegemônico da sociedade e se apresentavam como os únicos e verdadeiros representantes da igreja primitiva, pautados por uma hierarquia de moralidade e mérito tendo eles próprios como a ponta desta pirâmide.

Já os bellatores eram representados pelos Cavaleiros, os soldados do rei e do imperador, vivendo entre a violência e paz, os cavaleiros serão transformados nos soldados de cristo pela igreja e formarão a linha de frente na Reconquista Ibérica e nas Cruzadas.

Por último, formando a base desta pirâmide, estavam os laboratores, os camponeses medievais. O camponês é, acima de tudo, um produtor de pão, seu trabalho na agricultura é duro devido à natureza e pela escassez de seus rendimentos.

Contudo, essa divisão tripla da sociedade, esconde uma miríade de homens e suas profissões, em todas as suas partes. Exemplo básico é que esta divisão esconde um dos mais importantes membros dessa sociedade, ficando abaixo apenas dos reis e dos imperadores, o Senhor Feudal.

Entre os oratores, desaparecem o bispo e o padre secular, e os frades das ordens medicantes, os dominicanos, franciscanos, carmelitas, entre outros, já nos bellatores, não encontramos o mercenário, que vai dar origem ao ladrão, e o soldado peregrino, os laboratores tem seu foco voltado apenas para a maior parte deles, os camponeses, os artesãos e os operários são deixados de lado, também desaparecem os médicos e cirurgiões. E muitos outros ficaram de fora, o pobre, o herege, o marinheiro, a criança e, talvez tão importante para se entender esta sociedade quanto o senhor feudal, a mulher!

Para finalizar, não podemos deixar de ver que esta divisão é, essencialmente, rural, os moradores das cidades, os citadinos, não tem espaço nesta pirâmide.

Na Idade das Trevas histórica, queda do Império Romano até a formação do Império Carolíngio, esse conceito trifuncional poderia até ser bem aplicado, mas no ano em que o livro está situado, 1197, ele está completamente defasado, assim como hoje em dia, no ensino de História. Na Idade das Trevas do Vampiro, este conceito é a base para explicar e apresentar a sociedade mortal, como está bem explicitado na página 44 do Vampiro: A Idade das Trevas; Os homens na Idade Média se dividem entre aqueles que lutam, aqueles que trabalham e aqueles que rezam.

Entretanto e apesar dele ser um conceito perfeitamente aplicável ao cenário do livro, ele é excludente, pois, ignorava não somente outros conceitos aplicáveis a sociedade medieval, como também as outras categorias que formavam essa sociedade e que descrevi acima, limitando o universo do jogador a essas três categorias simplistas. O livro trás meio parágrafo para falar dos mercadores e artesãos e outro meio parágrafo para falar das mulheres, o restante é suprimido.


O Vampiro: A Idade das Trevas tem um suplemento que busca desenvolver melhor este conceito trifuncional, como era chamado por Jacques Le Goff, Three Pillars, foi lançado em 1997 e trás mais detalhes e tenta dar mais profundidade aos padres, cavaleiros e camponeses, mas não chega nem perto disso, ele é cheio de anacronismos, mistura comportamentos de várias era diferentes da Idade Média e é cheio de piadinhas como um parágrafo nomeado de “Resident Evil” e outro de “Law & Order”, e se preparando para as cobranças que certamente ia sofrer, os autores trataram logo de colocar um aviso nos créditos de que o livro não tinha o propósito de ser historicamente acurado e dizem que mudaram datas de acontecimentos e comportamentos de propósito para melhor se adequar ao cenário, mas basta uma passada rápida por ele para descobrir que, se eles tivessem mantido as datas originais não mudaria nada no cenário...

Para finalizar a completa omissão dos autores do livro em relação à História, a “Regra de Ouro” é apresentada logo no segundo parágrafo da introdução, com a desculpa de que “o mundo é seu, então jogue como quiser...”. Qualquer narrador e jogador de Storyteller sabe o que aconteceu com a história para que a “Regra de Ouro” seja usada, acho que não preciso dizer mais nada.

Assim como o conceito de “Dark Ages” é utilizado de forma errônea, o conceito trifuncional (oratore, bellatore e laboratore) como base para a sociedade medieval no livro também incorre em erros, exclusões, anacronismos e interpretações que não condizem com o cenário, além de ser extremamente limitador para um RPG. Como falei na postagem anterior, os conceitos não estão errados, eles não são mais utilizados na História e já não eram utilizados na época em que os livros foram escritos e suas escolhas para a formação do cenário do livro, leva a enganos e limitações que não são condizentes com a História e nem mesmo com o RPG como forma de entretenimento e diversão.

Mas a utilização destes dois conceitos, a Idade das Trevas e a sociedade trifuncional, não são os maiores problemas de cenário do Vampiro: A Idade das Trevas, pois temos outros bem problemáticos e falaremos sobre eles mais adiante nesta série.  

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2 Comentários

dizer “caralho, ficou muito bom” não chega nem perto do quão ficou realmente!
parabéns, man!
Bruno Neves disse…
Valeu meu irmão!!
Vindo de você, esse elogio me deixa muito feliz!!!