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Vampiro: A Idade das Trevas – Onde está a História no cenário? - Conceitos, preconceitos e ressignificações.


Olá a todos.

Finalizando esta análise do Vampiro: A Idade das Trevas, quero reiterar antes de tudo que, o que eu escrevi não é uma análise do livro enquanto jogo, mas sim uma análise do livro como fonte histórica em busca da historiografia inserida nele. Quais os conceitos históricos que o livro tem como base? Como esses conceitos são trabalhados e apresentados ao público? Eles são reais, verdadeiros, do ponto de vista histórico, eles realmente foram trabalhados por historiadores em algum momento?

Meu foco foi discutir os dois conceitos principais do livro, Dark Ages, a Idade das Trevas, e o conceito trifuncional de sociedade, os padres, os cavaleiros e os camponeses. Existem outros conceitos historiográficos no livro, mas estes são os que formam a base do livro e que foram muito utilizados por narradores e jogadores para a escrita de suas crônicas e montagem dos personagens.

Mas, e os preconceitos? O que temos por baixo das linhas de textos e imagens escuras que evocam a idade das trevas?

Aqui Vampiro: A Idade das Trevas é utilizado como fonte, e como fonte, ele representa muitíssimo bem o tempo em que ele foi pensado e escrito, nós historiadores podemos ver por meio dele uma série de eventos que marcaram o final dos anos 90 e de que forma isso afetou a escrita do livro.


E podemos ver também que ele é cheio de preconceitos, senso comum e interpretações culturais equivocadas. Você pode achar que a advertência colocada nos créditos do livro dá conta de se desculpar por isso, ou até de indicar o motivo de tais preconceitos serem utilizados nele, mas quem a leu sabe que ali, os escritores somente avisam sobre a utilização do mito do vampiro e nada mais.

Mas, realmente existe algo no livro para que os autores tenham que se desculpar, ou eles apenas escreveram o que sabiam sobre determinado assunto? Aquilo era apenas senso comum entre eles?

Vampiro é um jogo de RPG, e como quase todo jogo de RPG, ele é jogado de forma colaborativa entre os seus jogadores, aquela máxima do RPG; “Todos ganham ou todos perdem” cabe bem a este jogo. Seus personagens, integrantes dos 13 clãs, as famílias vampirescas, combatem um rol absurdo de inimigos, lobisomens, fantasmas, magos e até mesmo uma linhagem de vampiros que adoram demônios, em busca de sangue e da sobrevivência de sua espécie.

Cada clã possui um arquétipo e uma alcunha que o define dentro da sociedade dos vampiros, Reis Filósofos, Magistrados, Artesãos, Patrícios, são algumas das descrições destes clãs. Irei aqui me ater a três clãs, que podem ser escolhidos pelos jogadores, os Assamitas, os Seguidores de Set e os Ravnos.

Os Assamitas são descritos como Diabolistas e Assassinos, os Seguidores de Set como Servos da encarnação das trevas e da destruição e corruptores da humanidade, e os Ravnos como Vagabundos e Ladrões. Cada um destes clãs está ligado a um grupo social no livro, os Assamitas representam os árabes, os Setitas representam os egípcios e os Ravnos representam os ciganos.

Todos os outros clãs possuem raízes européias e suas descrições variam entre guerreiros filósofos, elegantes predadores e cavaleiros e reis, mesmos aqueles descritos como loucos e leprosos tem certa complacência na escrita de seus arquétipos. Então porque temos esta diferença gritante entre os clãs da Europa e os clãs de fora? E também porque colocar estes clãs como possíveis de serem escolhidos pelos jogadores se eles são, claramente, colocados como inimigos dos outros vampiros no livro?

Pode aparecer alguém dizendo que; “mas era assim na Idade Média!”, e eu respondo, não era não, a luta entre os Cristãos e os Árabes eram territoriais e não religiosa, como filmes e séries tentam fazer você acreditar, os egípcios era um povo respeitado e por muitas vezes foram aliados dos europeus e os ciganos apesar da vida nômade eram mais respeitados até que outros povos não europeus na idade média, as perseguições ao povo ciganos só se intensificaram na Segunda Guerra Mundial.

Essas interpretações nos dizem muito pouco sobre as relações entre os povos na Idade Média, mas nos dizem muito sobre a época em que o livro foi escrito, final dos anos 90, e elas são fruto de desconhecimento de outras culturas, senso comum e xenofobia!

Os textos usados no livro para descrever estes três clãs estão cheios de expressões depreciativas não somente para os integrantes dos mesmos, como também para os povos que eles representam. Exemplo disso é o termo “Sarraceno” usado para descrever os Assamitas, termo genérico que era usado pelos europeus na idade média para se referir a todos os árabes e muçulmanos de forma depreciativa. O conjunto destes textos acaba por colocar estes três clãs como potenciais inimigos dos clãs europeus e isso causa dois grandes problemas ao grupo de jogo, quebrando a unidade do grupo e divulgando senso comum e passagens xenófobas entre os jogadores.

Não existe outra maneira de dizer isso, neste ponto o livro é extremamente preconceituoso e seus autores foram extremamente irresponsáveis ao escrever estas passagens, mesmo para a época em que o livro foi escrito. Voltando as referencias literárias que consta no livro, não existe um livro sobre a história destes povos como indicação de leitura, nem entre os autores e menos ainda para os jogadores.

Mesmo mais de 20 anos depois de lançado, vejo que ainda podemos desconstruir tais preconceitos inseridos no Vampiro: A Idade das Trevas, pois mesmo que alguns dissessem que “É só um jogo”, os usos de conceitos errados e preconceitos prejudicam e atrapalham também a diversão do livro enquanto jogo, a não ser que seja senso comum em alguns grupos aceitar o senso comum como algo inerente ao RPG.


Mas vocês podem se perguntar: Mas Chuva, isso só te incomodou agora, depois de tanto tempo jogando? Sim, eu precisei me formar historiador, precisei fazer centenas de leituras de texto e livros sobre Idade Média, jogos e RPG e precisei envelhecer para entender melhor as coisas, pois como todo sabem, a desconstrução de certos preconceitos leva tempo, bastante tempo.

Assim como levou bastante tempo para a White Wolf perceber tudo o que havia de errado com o Vampiro e tentar consertar. Levou precisamente 20 anos para ela fazer isso e só foi feita em sua encarnação como Onyx Path.

A edição de aniversário de 20 anos do Vampiro: A Idade das Trevas foi lançada em 2015 e buscou ressignificar os conceitos utilizados no livro original e por fim aos preconceitos e xenofobia tão presentes em sua primeira versão.

A primeira mudança foi no tamanho do time de escritores, no lugar de 04 escritores, temos 20 e se no original temos apenas uma mulher escrevendo, na nova versão temos nada menos que 12.

O conceito de Dark Ages foi modificado, afastado do errôneo conceito historiográfico e focado nas trevas interiores dos personagens, a sociedade medieval se tornou plural, como ela realmente era, e não fechada em três funções que pouco se aplicavam a todos os seus integrantes. Se o anterior contava com apenas meio parágrafo falando sobre as mulheres no cenário, agora temos uma mulher como personagem narradora do livro e apresentadora do cenário e também quase todos os desenhos representativos dos clãs são mulheres. Além disso, temos a inclusão de africanas no livro e uma maior descrição do norte da África no cenário. No lugar dos campos distantes dos castelos sombrios, temos como cenário as cidades européias, e seus moradores, os citadinos, todos estão descritos no livro

E as descrições dos clãs mudaram? Sim, mudaram, e para melhor. Ampliadas para melhor explicar os próprios clãs ao invés de estigmatizar os povos nos quais eles foram baseados. Exemplo disso foi a grande mudança feitas nos Seguidores de Set, em minha opinião, eles são o melhor clã do jogo, sua história é sensacional. Infelizmente o termo “Sarracenos” ainda é usado para se referir aos Assamitas, mesmo que eles digam que usado apenas pelos estrangeiros, mas é um tropeço em meio às grandes mudanças feitas, para melhor no cenário.

O “Vampire Twentieth Anniversary Edition: The Dark Ages” foi disponibilizado gratuitamente pela Onyx Path no inicio da pandemia da Covid-19, no site DrivethruRPG e no momento desta postagem está custando 24,99 dólares.

Com essa postagem, encerro esta série de análises sobre o Vampiro: A Idade das Trevas, na próxima postagem vou trazer uma lista de livros que podem ser usados por mestres e narradores em seus jogos e que os ajudarão a superar os problemas apontados por mim nesta série.

Se você, assim como eu, é fã do Vampiro: A Idade das Trevas, não jogue seu livro fora só elo que leu aqui, ele ainda tem muito potencial, só precisa ser melhor explorado!!!

Deixem os dados rolarem!!!  

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