Muitas vezes, enquanto estamos folheando nossos livros de RPG, nos perguntamos de onde veio a ideia do autor para escrevê-lo. Qual é o seu ponto de partida para criar os mitos que aparecem no cenário? Em qual culturas, ou culturas, estão baseados?
Como fã do Mundo das Trevas, tanto do novo quanto do antigo, sempre me perguntei, por exemplo, de onde Mark Rein-Hagen tirou o mito do Lobisomem lutando contra espíritos e entidades malignas no Lobisomem: O Apocalipse. E em que os produtores do Novo Mundo das Trevas se basearam para criar as relações entres os humanos e o mundo espiritual no cenário.
Às vezes, por inocência, acreditamos que estas são ideias originárias da mente dos criadores e não nos damos conta de que a História da humanidade está repleta de mitos e histórias semelhantes.
Sempre disse para amigos e jogadores, mesmo antes de ser historiador, que não existe melhor suplemento para RPG do que um livro de História, e vou apresentar aqui um livro que responde as questões que coloquei acima.
Vamos à ele:
GINZBURG, Carlo. "Os Andarilhos do Bem: feitiçaria e
cultos agrários nos séculos XVI e XVII., trad., São Paulo, Ed. Companhia das
Letras, 1988.
Os livros do historiador italiano Carlo Ginzbutg, editados
pela "Companhia das Letras", chegaram ao Brasil em ordem inversa.
"O Queijo e os Vermes", escrito em 1976, foi lançado no ano passado.
É um belíssimo estudo sobre a história devida do moleiro Domenico Scandella,
também conhecido como Menocchio, perseguido e condenado pela Inquisição.
Ginzburg reconstitui, no interior de suas confissões, traços da tradição oral e
da cultura escrita, desvendando a imbricação dos saberes. Além disso,
destaca-se na efervescência das idéias de Menocchio, uma vida rebeldia, uma
explosiva indignação ao silêncio a que era confinado.
Fruto da mesma documentação inquisitorial, Ginzburg já havia
publicado dez anos antes na Itália "I benandanti: stregoneri e culti
agrari tra Cinquecento e Seicento", lançado este ano no Brasil, com o
título "Os Andarilhos do Bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI
e XVII", traduzido por Jônatas Batista Neto.
Neste trabalho pioneiro, o historiador italiano estuda a
mudança das atitudes religiosas dos camponeses em vista da pressão exercida
pela Inquisição. Ao focalizar um culto fundamentalmente agrário de raízes
pagas, Ginzburg capta as mudanças sutis operadas pelos mecanismos de repressão
até transformá-lo num culto diabólico.
Estudos revelando cultos pagãos no seio da Cristandade já
foram realizados anteriormente por Jules Michelet. "A bruxa" (1862)
—, por J. Frazer — "O Ramo de Ouro" (1890) —, por Maragaret Murray —
"O culto da bruxaria na Europa Ocidental" (1921), "O deus das
bruxas" (1931) —, entre outros. Mas somente com "Os Andarilhos do
Bem" obteve-se uma relação coerente entre os cultos pagãos e a feitiçaria.
Esta obra dá um novo impulso às investigações acerca das sobrevivências
religiosas pagãs na vida cotidiana da coletividade. Na esteira de Ginzburg,
outros trabalhos como o de Jeffrey Russell — "Bruxaria na Idade
Média" (1972) —, Robert Mandrou — "Magistrados e feiticeiros na
França do século XVII" (1968), — Keith Thomas, "A religião e o
declínio da magia" (1971), — constituem marcos imprescindíveis na
historiografia contemporânea para a compreensão dos comportamentos coletivos e
de suas representações simbólicas.
A pesquisa sobre "Os Andarilhos do Bem"
circunscreve-se à região do priul, nordeste da Itália, e ao período que se
estende do final do século XVI até meados do século XVII.
Valendo-se de fontes inquisitoriais, o autor percorre o
fascinante trajeto de recuperação de vozes camponesas, sufocadas pela
mentalidade deformadora dos inquisidores e, a partir de idéias aparentemente
soltas e desconexas, constrói o vasto tecido de crenças populares da época.
Diante dos rumores que circundavam uns tais
"benandanti", a Inquisição decide convocá-los para inquirir sobre as
suas atividades. Em 1575, no convento de San Francesco di Cividale do Friul têm
lugar os interrogatórios de dois benandanti: o pregoeiro Battista Moduco e um certo
Paolo Gasparutto.
O depoimento de Moduco revela o cerne das atividades dos
"benandanti". "Eu sou 'benandanti' porque vou combater com os
outros quatro vezes por ano, isto é, nos Quatro Tempos, de noite, de forma
invisível, com o espírito, ficando o corpo; e nós andamos em favor de Cristo, e
os feiticeiros, do diabo; combatendo uns contra os outros, nós com os ramos de
erva-doce e eles com os caules de sorgo" (1).
Não é difícil imaginar o espanto dos inquisidores diante
desse relato! Como poderiam enquadrá-lo?
Soma-se a essa descrição, para aumentar ainda mais o abismo
de incompreensão entre "benadanti" e inquisidores, a fala de Paolo
onde diz comparecer às reuniões "em espírito", cavalgando lebres,
gatos e outros animais.
Aos olhos dos inquisidores, as reuniões noturnas e as
cavalgadas em animais eram esboços enevoados do sabbat das feiticeiras,
descrito nos trabalhos demonológicos, amplamente difundidos na Europa Ocidental
entre os séculos XV ao XVII. Entretanto, combatendo "por amor das
colheitas" contra bruxas e feiticeiros, os "benandanti" eram
essencialmente diversos destes: não renegavam a fé, não pisoteavam a cruz, não
cometiam sacrilégios .
No bojo de seu culto, emergia um rito de fertilidade
intimamente ligado aos ritmos das produções agrícolas. Se saíssem vencedores do
combate, estava garantida a boa colheita; caso contrário, haveriam de carregar
o fardo da fome.
Contudo, um elemento novo, inserido na confissão de Paolo
Gasparutto, delineará as inquisições subsequentes. Quanto indagado: "quem
vos chamou para entrar nessa companhia de benandanti?" Gasparutto
responde: "o anjo do céu" (...) (2).
Ocorre então uma brusca mudança de atitude por parte do
inquisidor. Sequioso por operar em terreno conhecido, passa a conduzir as
questões de maneira violenta, sugerindo a identificação do "anjo" com
o diabo e dos "benandanti" com os feiticeiros. Para isso, impregna o
"anjo" de atributos diabólicos e termina por conformar as atividades
dos "benandanti" aos sabbats das bruxas e feiticeiras.
Procurando decodificar os ritos e cultos pagãos que se
vinculam, de alguma forma, ao mito dos "benandanti", Ginzburg
aventura-se pelo folclore europeu, represa de elementos arcaicos, pré-cristãos.
Ao examinar o processo de um lobisomen lituano ocorrido em Jüngensburg em 1692,
traça um interessante paralelo com o culto da fertilidade dos
"benandanti".
Com mais de oitenta anos, um certo Thiess confessara diante
dos juizes ser um lobisomem e, junto com outros lobisomens, descer ao Inferno
onde lutava contra o diabo e os feiticeiros. Os lobisomens tinham que recuperar
o gado, as sementes e outros frutos da terra roubados pelos feiticeiros, se não
quisessem ver a penúria se alastrando pelos campos. Apesar da insistência
desmesurada dos juizes, Thiess nega qualquer pacto com o diabo, afirmando ser
inimigo do diabo, ("cão de Deus"), e protetor das colheitas.
Em ambos os casos, Ginzburg constata a descida dos agentes
ao mundo subterrâneo afim de combater forças destrutivas, assegurando a
fertilidade do solo e garantindo a prosperidade da comunidade.
O testemunho de Anna, viúva Domenico Artichi, chamada
"a Ruiva", confirmou o elo existente entre os "benadanti" e
o mundo dos mortos ao revelar que o seu marido era "benandante" e
andava com os mortos.
No entanto, o mito dos "benandanti" foi mais
difundido como um culto agrário. Ginzburg escava o seu caráter sincrético:
"No amálgama de crenças defendidas pelos 'benandanti', coexistiam dois
núcleos fundamentais: um culto agrário (que constituía, com certeza, o núcleo
mais antigo) e um culto cristão, além de um certo número de elementos
assimiláveis à feitiçaria. Não tendo sido compreendido o primeiro pelos
inquisidores, e tendo sido claramente recusado o segundo, esse grupo compósito
de mitos e crenças deveria desembocar, na falta de outras saídas,
inevitavelmente na terceira direção" (3).
Assim, em 1618, no testemunho da esposa de um tenoeiro,
Maria Panzona, surge pela primeira vez, o diabo presidindo as reuniões noturnas
realizadas no "prado de Josafá". Todavia, quando desperta de uma
crise de epilepsia vivida em pleno interrogatório, ela deixa que aflorem os
estratos mais inconscientes de sua mente, ou seja, os mitos dos
"benandanti" ressurgem sem nenhuma contaminação pelas deformações
diabólicas.
Entretanto, a partir de 1634 (cinquenta anos após a
ocorrência dos primeiros interrogatórios), a imagem do sabbat diabólico foi
finalmente incorporada e assimilada pelas mentalidades camponesas, que se
tornam progressivamente hostis aos "benandanti": "esses astutos
impostores" (4) "que andam com as bruxas" (5), como testemunham
os camponeses ao denunciarem o 'benandante' Michele Soppe ao Santo Ofício.
Apesar do grande número de denúncias e de confissões que
continham descrições de sabbats e de práticas mágicas, ninguém foi condenado.
Por volta de 1650, na Itália, não se condenava mais as bruxas e feiticeiras. O
ceticismo crescente e a vigência da Razão em nome do florescimento científico
relegou o conhecimento popular ao nível das superstições e da ignorância.
A dissipação do culto dos "benandanti" representa
a vitória de um saber ancorado numa verdade única, racionalizada, em detrimento
das efervescências oníricas, fantásticas e sensíveis que são parte integrante
da tradição oral. E lamentava-se Voltaire: "Hoje, joga-se insípidamente o
baralho, é uma pena que sejamos descrentes".
1 Comentários
Se procurarmos com atenção, podemos encontrar boas inspirações para ficção em jogos de RPG.
Estou justamente procurando por fontes históricas para servir de base para uns contos de fantasia fantásticos que estou idealizando... É bem nesse feeling mesmo: buscar referências histórico-culturais para revisitação e extrapolação.
Parabéns pela ideia do post!